Para falar deste tema tão preciso, e para fique clara esta questão, convidamos Ana Alexandre, Licenciada em Farmácia e Especialista em Dermocosmética. Trabalha no mercado de retalho, e está em cima das novidades e das polémicas, que tantas vezes assombram quem se vê envolto em informação. Desenvolveu um estágio na área da oncologia, que a tornou próxima desta realidade. A Ana também é autora do Blog The Skin Game, recheado de informação útil, e ainda a pode encontrar na rede social Instagram, na conta @anacbalexandre
Segundo Ana Alexandre, em casos de tratamentos oncológicos, é sabido que uma das recomendações que é dada sempre, é passar a usar produtos cosméticos sem fragrância e evitar perfumes. “Não se preocupem, não venho aqui dizer que há algo de errado nesta recomendação, está certíssima. Contudo, sou fã de que as pessoas percebam o porquê das recomendações que são dadas, em vez de simplesmente terem de aceitar o que lhes dizem”.
Porque usamos fragrância nos cosméticos?
A resposta curta a isto é simples: porque gostamos. Mas vamos à resposta longa, que é bem mais interessante do que esta.
Num estudo feito pela GlobalData em 2021, apenas 13% das pessoas entrevistadas declararam que preferem os seus cosméticos sem fragrância. A categoria vencedora de entre os vários tipos de fragrância foi a dos aromas florais com 30%, seguida de perto pela de aromas frescos com 24% e a de frutados com 23%.
Na verdade, isto não é surpreendente. As fragrâncias comunicam ideias complexas, criam estados de espírito, aliviam o stress, aumentam a sensação de bem-estar e despoletam sentimentos positivos. Além disso, as fragrâncias estão altamente associadas à memória, pelo que basta uma fragrância para nos transportar para um momento da nossa vida, um lugar ou lembrar-nos de um ente querido. Num momento de autocuidado como a rotina de pele, é normal que haja uma prevalência de produtos que nos ajudam a sentir bem.
Mais que isso, estudos recentes recorrendo a metodologias como eletroencefalogramas e ressonâncias magnéticas conseguiram determinar que as fragrâncias efetivamente modulam a atividade de diferentes ondas cerebrais e são responsáveis por alterações de vários estados no cérebro. Não é, portanto, imaginação nossa que estas alterações acontecem apenas por cheirarmos algo diferente.
Por fim, há que considerar que as fragrâncias são uma forma de mascarar o cheiro desagradável de alguns ingredientes que são imprescindíveis ao bom funcionamento da pele. Muitas fórmulas que usamos atualmente seriam intoleráveis se existissem sem fragrância.
(Foto: Freepik)
Quão seguras são as fragrâncias?
Como todos os cosméticos vendidos na União Europeia (UE), apenas podem ser usadas substâncias autorizadas pela legislação da UE. Apesar de ser frequente ver uma grande dose de desinformação online acerca desta temática, qualquer produto cosmético vendido em Portugal de forma legal tem de cumprir a legislação.
Aquilo que causa alguma confusão, é o facto de as fragrâncias serem referidas numa lista de ingredientes apenas como “fragrance”. O facto de o consumidor só ter acesso a este nível de informação não significa que as marcas não tenham de declarar toda a composição do produto a nível legal. Na verdade, para todos os cosméticos é elaborado aquilo a que se chama o product information file no qual constam análises detalhadas, incluindo a toxicológica, de cada substância utilizada naquele cosmético. Assim, se estiver presente algum tipo de substância proibida pela legislação, o cosmético não é autorizado para venda no espaço UE.
Dito isto, as fragrâncias são uma das famílias de compostos (juntamente com os óleos essenciais) que provocam maior percentagem de dermatites de contacto e alergias. Contudo, ainda assim apenas 4% da população na Europa sofre de alergia a fragrâncias. Contudo, tal como todos os outros tipos de ingredientes, as fragrâncias não são todas iguais, e existem muitas que raramente causam alergias.
A fragrância no doente oncológico, sim ou não?
Então, se gostamos de fragrâncias e elas não são perigosas como nos querem fazer parecer, porque é que as evitamos no doente oncológico?
Existem duas razões principais para isto: a primeira é que é muito frequente que a função barreira da pele esteja alterada, a segunda são as alterações olfativas e as náuseas.
A barreira danificada e alérgenos
Quando falamos de estudos globais acerca de alergias de contacto, estes são habitualmente feitos em pessoas cuja pele está saudável, capaz de defender o corpo de agentes externos, e com a sua função barreira intacta. Contudo, em muitos doentes oncológicos, este não é de todo o caso e a probabilidade de haver rashes, alergias ou outros problemas de pele devido às fragrâncias, aumenta drasticamente.
De entre os vários efeitos adversos de tratamentos oncológicos, contam-se os rashes cutâneos, xerose (pele extremamente seca), prurido, entre muitos outros. Consequentemente, podemos considerar que é sempre mais seguro presumir que estaremos perante uma pessoa que, ainda que no momento não tenha estes efeitos adversos cutâneos, tem uma alta probabilidade de os ter no futuro.
Quando a pele tem a sua função barreira comprometida, torna-se mais fácil que agentes externos penetrem até camadas mais profundas da pele. Enquanto nas camadas superficiais da pele, onde permaneceriam se a pele estivesse saudável, os compostos não fariam qualquer tipo de efeito adverso, ao penetrarem nas camadas mais profundas podem despoletar problemas na pele. Quando falamos deste risco num contexto de um tratamento vital, não queremos, de todo, correr o risco de ter de o parar por motivos facilmente evitáveis.
Assim, por motivos de prevenção, recomenda-se usar produtos altamente nutritivos, mas com fórmulas minimalistas e sem fragrância.
As náusea e alterações no olfato e paladar
As náuseas estão presentes em cerca de metade dos doentes oncológicos que recebem tratamento e as alterações ao olfato atingem também uma fatia importante desta população, muitas vezes associadas também a alterações no paladar.
Assim, é importante perceber que qualquer aroma pode influenciar negativamente a fase pós tratamento. Por um lado, aromas fortes podem facilmente induzir uma onda de náusea ou prolongá-la. Contudo, com as alterações ao olfato, mesmo aromas suaves que antes tinham uma associação positiva para a pessoa, podem subitamente tornar-se impossíveis de tolerar.
Vamos manter o foco.
Como o mais importante é que o tratamento oncológico seja tolerável para que seja cumprido o ciclo até ao fim, devemos sempre trabalhar no sentido de melhorar e facilitar a adesão terapêutica.
A fragrância nos cosméticos tem um papel relevante, sim, mas o mais importante no momento do tratamento oncológico é garantirmos que o conseguimos levar até ao fim.
Ana Alexandre - @anacbalexandre